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EMÍDIO AGRA: Jardin des oiseaux curadoria Paula Pinto 25 de Janeiro - 22 de Março de 2025 CAAA Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, Guimarães

Jardin des oiseaux, o título da exposição de Emídio Agra, que toma o nome de um dos seus objectos, sugere a memória de um espaço evanescente, de uma realidade difícil de fixar num universo em acelerada transformação. É neste jardim de vestígios, ainda reconhecíveis, mas que há muito abandonaram os seus usos e propósitos, que Emídio Agra resgata os materiais que articula em construções sobreviventes, em conjuntos instáveis onde confluem pensamentos especulativos, literatura, poesia, sonho, cinema ou filosofia. Estes objetos, narrativos e ficcionais, podem ser entendidos enquanto vetores de fuga, desvios ou saídas alternativas para as reais catástrofes engendradas pela paradoxal crença modernista na excecionalidade humana. Breves, frágeis, estes universos sugerem gestos e ações que transportam para espaços outros, e que desvendam situações e ambientes irreconhecíveis. Lugares impossíveis, planos inclinados para o abismo ou o silêncio, como a frase que Jardin des oiseaux (2023) parece surrurrar: “J´incline ma petite tête sur un livre que je fais semblant de lire”. Veículos sugestivos e performativos, que amarram a sua experimentação ao imaginário de quem os incorpora, dobrando-se e desdobrando-se em múltiplas imagens ou situações, responsabilizando-nos pelos mundos que transportamos. Compostas com indícios do passado: restos de botas, malas, palavras, arames, fios coloridos, cruzetas, fita-cola, fronhas, calças, relógios pintados, fósforos, guarda-chuvas, caixas de fruta, botões ou embalagens perdidas... as construções de Emídio Agra não se parecem com nada que conheçamos. As suas composições não resultam da soma de componentes díspares, não resultam de uma lógica cumulativa, antes sugerem terceiras vias. Sugerem pensamentos e práticas alternativas. Encadeiam-se, produzindo variações, transformações e permutas, despertando múltiplas memórias. O mesmo objeto pode assumir-se como uma peça suprematista, abrir-se num lençol de cama onde se podem observar as estrelas ou as horas partidas, servir de ambiente onde se introduz a cabeça, ou transformar-se no vestido de uma fantasma; nas suas mãos, uma lata de creme hidratante pode transformar-se numa guilhotina. São composições de fragmentos arrancados do quotidiano, espectros deambulantes ultrapassados pelas próprias histórias e usos. Objetos que repetem propostas descartadas, oscilando entre um possível absurdo e a liberdade do pensamento, dependendo do seu olhar externo; objetos que encenam a magia das transformações mais ou menos inúteis que acontecem neste universo de rápido consumo, onde ainda persiste um humor tímido. Máquinas que resistem, e que se enunciam desde lugares de fragilidade, sugerem que fechemos os olhos e fiquemos quietos, continuando a existir através da perceção, da escuta e da fantasia. Como mostrar os objectos de Emídio Agra e fazer com que o público se demore no seu imaginário? Delicadas, frágeis, pouco evidentes, reflectindo uma realidade alienada e longe de assumir empatias estéticas, as criações de Emídio Agra descobrem-se numa manipulação simultaneamente táctil e reflexiva, num gesto do pensamento difícil de partilhar com o público de uma exposição. Talvez por isso, raramente vistos. Estes objetos-poemas foram acionados em performances privadas com o autor, e são agora mostrados em diálogo com uma série de filmes realizados por Ana Pissarra e José Nascimento, e com a escrita de Mario Campaña. As criações de Emídio Agra proliferam noutras linguagens, fundem real e imaginário, e sugerem mundos e sensações para além da matéria mais tangível. Vídeos mais antigos, captados pelo olhar documental de Pere Puig (2007), permitem assistir ao literal desdobrar das peças, à sua manipulação e incorporação pelo autor. À semelhança de sequências fotográficas, os vídeos de Puig funcionam como um inventário e como possível livro de instruções para a manipulação das obras, revelando desdobramentos, ações e sons imprevisíveis, sem desvendar totalmente os seus imaginários. Em contrapartida, os vídeos mais recentes, realizados para acompanhar a exposição, ultrapassam a barreira da fisicalidade, numa direção ficcional para a qual os objetos de Emídio Agra parecem já apontar. Os encadeamentos de planos, os jogos de montagem e a construção de ambientes sonoros de Ana Pissarra e José Nascimento acrescentam uma carga fantasmagórica e onírica às obras. Através do recurso a arrastamentos e sobreposições de imagens, ao suspense criado pela aproximação a estranhas figuras para as quais só encontramos referentes em mundos imaginários ou paralelos, a animações lúdicas e situações incongruentes, à sugestão de momentos de passagens, travessias e transformação entre escalas, dos cosmos ao berlinde, à captação de sombras, a sequências de planos aproximados, planos de manipulação de dispositivos cénicos, tecnológicos ou puramente criativos, planos do corpo inteiro do artista na sua relação performática com os objetos, ou a paisagens sonoras e leituras de textos enigmáticos, os cineastas metamorfoseiam os objetos/ações propostos por Emídio Agra. As malas, os títulos, as palavras suspensas e os universos literários transportados nas obras de Emídio Agra, prolongam-se na viagem sugerida pelo escritor Mario Campaña através de um conto escrito para a exposição, que alerta para a possibilidade de não retorno dos elementos naturais, dos seres, objetos, lugares e mesmo das suas memórias, integrado numa publicação desenhada por Macedo Cannatà. Evoca a palavra como referente último, à semelhança da sensação que temos no confronto com as obras expostas em Jardin des oiseaux. Olhando as caixas, as embalagens, as malas e todos os elementos que delas fazem parte, é possível hipotisar com Mario Campaña: “É aqui que dorm(e), é aqui que (s)e recolh(e) todas as noites”. Articulando múltiplas diferenças e afinidades, pretende-se formar uma “comunidade plural” (expressão de Emídio Agra citando Fina Birulés), propõe-se um espaço onde seja possível ver, sentir, distinguir e pensar quem somos e como reflectimos o presente, a partir do que nos é proposto. Trata-se, assim, de construir um mundo comum, partilhado, onde o cinema, a literatura e as artes plásticas possam ser vistos autonomamente, mas também numa teia de relações, num espaço onde nos podemos comprometer através das histórias que contamos, onde regressam as memórias que começam a ser apagadas. Citando um dos poemas de Mario Campaña, “Todo o empenho é um muro e toda a conquista uma ilusão.” Citando Susana Camanho, que com eles convive, “são objetos de vários tamanhos, atados com fios quebradiços, finas linhas azuis ou amarelas; que se sopram, espreitam, tocam ou, simplesmente, se olham; que emitem ruídos, estrépitos de maquinaria, mas também assobios, gorjeios, chilros, grasnos; que se colocam no nariz ou nas orelhas, ligam e desligam, desenrolam, enrolam e guardam em malas, caixas e gavetas sem fundo. Deslocação contínua entre uma “história individual” e uma “história comum”, objetos descartados, frágeis, arrumados em caixas e malas de viagem que transportam as marcas da experiência histórica, vestígios de oportunidades imaginadas ou de oportunidades perdidas, que parecem dizer: ainda podemos escapar à catástrofe.” Paula Pinto

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Língua
Português
Direitos
Carlos Lobo (Fotografia)
Outro Contribuinte
DGArtes, Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, Guimarães, Performing the Archive