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CELESTE CERQUEIRA: e_i_migração

CELESTE CERQUEIRA: e_i_migração Texto: Paula Parente Pinto E_I_MIGRAÇÃO apresenta uma seleção de referência às barreiras fronteiriças erguidas para conter a entrada de fluxos migratórios na Europa, tendo, literalmente, por pano de fundo, suportes têxteis que, de símbolos da fragilidade e último reduto do conforto, vestimenta humana e revestimento doméstico, se transformam em imagens dos materiais de violência, das paisagens de exclusão. A obra de Celeste Cerqueira relaciona recorrentemente suportes materiais das políticas de vigilância (como câmaras de filmar, barreiras policiais, fitas de advertência, redes metálicas), com notícias da imprensa diária sobre a política internacional, tornando visíveis as cadeias operacionais recursivas das técnicas culturais, que provocam mudanças sociais e invertem noções básicas de transparência e atravessamento em opacidade e intransponibilidade, de proteção e convivialidade, em medo e violência. Relacionando media, cultura e tecnologia, o seu trabalho aborda as designadas “materialidades da comunicação”, denunciando os aparatos de produção de sentido e os sistemas burocráticos que produzem os indivíduos que depois processam. As barreiras fronteiriças e “os campos de refugiados não deveriam existir: eles representam um crime e um falhanço político”. E apesar da proliferação global de campos de refugiados, estes enclaves continuam a padecer de qualquer estatuto de permanência, o que fragiliza, ainda mais, a sua condição de existência. Existem fora do enquadramento do estado-nação, o que os impede de serem reconhecidos como “património para exilados”. Redutos de civilizações massacradas por nações invasoras e colonizadoras, estão juridicamente impossibilitados de proteção como património cultural, institucionalizando-se como territórios de desproteção e precariedade. A caracterização destas populações como “deslocadas” ou “desalojadas,” e a sua condição apátrida, impedem o desenvolvimento e proteção do seu estatuto cultural e político. A distância eurocêntrica das geografias ditas “problemáticas”, reveladora do exacerbar de um poder central, acabou por ditar que esta exposição se concentrasse na massiva construção de barreiras e muros fronteiriços, erguidos durante os últimos quinze anos, dentro da União Europeia, região geopolítica cuja maior representação económica – as notas de euro –, supostamente celebram, com as suas pontes e portas, a abertura, a cooperação e a comunicação entre os diversos povos. Enquanto a retórica da estabilidade económica e a imagem da segurança política se propagam, a par da crença na imaterialidade da sua propaganda, constroem-se milhares de quilómetros de muros eletrificados de betão e arame farpado, aprisionando e excluindo seres humanos numa atmosfera de medo, ódio e desigualdades, que se impõe sobre uma frágil construção da democracia, fundamentada na liberdade de expressão, igualdade de direitos e justiça social. A exposição e_i_migração, confronta-nos com uma palavra composta por dois prefixos, que já não refletem apenas sentidos inversos do mesmo ato de atravessamento de fronteiras, mas explora o turismo e o consumo económico de alguns privilegiados, enquanto coíbe os direitos básicos da sobrevivência e dignidade humana de milhares de outros seres humanos. Contrariando a ideia de liberdade e de distância relativamente ao discriminado "mundo indesejado", Celeste Cerqueira dá visibilidade às barreiras materiais através das quais as políticas liberais (e ditas socialmente responsáveis) da União Europeia se legitimam, negando a justiça espacial de povos e países dos quais depende a qualidade de vida dos europeus, e gerando desigualdades endémicas que inviabilizam a democracia. A par da negação da precarização da sociedade europeia, da qual as políticas de dominação dependem, também as imagens de satélite dissimulam, desfocam, os muros fronteiriços de uma Europa "sem fronteiras". Sob o título “Paisagem e fechamento”, Celeste Cerqueira apresenta uma série de representações, de sete dessas novas fronteiras: (1) as sucessivas barreiras em Calais – próximas do campo de refugiados francês conhecido como a “Selva”, onde milhares de seres humanos se aglomeram junto do porto, a aguardar o estatuto de exilados e tendo por destino o Reino Unido; (2) o maciço muro erguido pela Hungria na fronteira com a Sérvia; (3) os 160 quilómetros de arame farpado com que a Bulgária impede a entrada de refugiados do Médio Oriente, da África e do Afeganistão a partir da Turquia, país subsidiado pela U.E. para o seu acolhimento; (4) o muro que a Grécia ergueu na fronteira com a Turquia; (5) a vedação que a Macedónia do Norte ergueu na fronteira com a Grécia; (6) o “muro de aço” que a Polónia levantou na fronteira com a Bielorrússia; (7) o muro erguido em Melila, que juntamente com o de Ceuta, são os exemplos mais próximos de Portugal. A referência ao catálogo de redes e malhas metálicas que surgiram nas paisagens europeias aparece na obra de Celeste Cerqueira em 2017, numa série de desenhos compostos por entrelaçados de linhas desenhadas a grafite (República das Artes, V. N. de Cerveira, 2017). A subtileza das linhas dos desenhos contrastava com a resistência das malhas metálicas que representava, e a opacidade do papel questionava a dúbia transparência das barreiras intransponíveis. A delicadeza estrutural da obra não apaziguava o duro enredo das políticas migratórias, mas enquanto nessa altura o desenho se apresentava abstrato, a presente instalação no CAAA (Guimarães, 2025) coloca o público europeu (EU), no centro da árida paisagem de cimento e arame farpado, em que a Europa se aprisionou. Noutra série de obras intituladas “Barreira” (Espaço Mira, Porto, 2016), a artista transformou a janela em parede, a abertura e a passagem em intransponibilidade, através da inscrição de desenhos de muros opacos de tijolos (e outros materiais) sobre estores translúcidos. Também as tendas surgiram anteriormente como suporte em Quando é amanhã? (Fórum da Maia, 2013), onde Celeste Cerqueira expôs textos inscritos em tecido sobre sete tendas de campismo, para sublinhar a crise humanitária que mais uma nova vaga de refugiados, anunciava na Europa. Frases como: “Nous resterons encore longtemps”, “Quando é amanhã?”, “We want the world now”, “Änderungen geschehen”, ou “Vienes emigrado o de visita?” sublinhavam a inaptidão humanitária com que toda a Europa encarava problemas urgentes. A tenda, habitação mínima que simboliza o abrigo num local de passagem, tornava-se espaço de inscrição e alerta sobre a precaridade na resolução de problemas que se sedimentam, e cuja invisibilidade reside na acrítica retórica da imprensa. Em e_i_migração, Celeste Cerqueira utiliza outra vez as tendas de campismo, agora como suporte para a representação das extensas barreiras erguidas em várias fronteiras da Europa, impedindo a livre circulação de quem foge dos seus países de origem. As tendas foram integradas nos muros da exposição, sobrepondo e invertendo o lugar dos objetos e das imagens, confrontando o observador europeu com a complexidade da problemática, dando visibilidade às barreiras com que a retórica política se inventa. As tendas são justapostas sobre têxteis estampados, paisagens interiores do domínio do medo em que nos aprisionamos. Amostras de desenhos coloridos a pastel de óleo, representando imagens de arame farpado, redes e malhas metálicas (estranhamente sugestivas das coloridas pratas de embrulham os bombons de chocolates), foram transformadas em estampados têxteis, lembrando a subtil utilização de tecidos e tapetes como forma de separação da vida doméstica interior, do seu exterior territorial e político, sobretudo em civilizações nómadas. Estes têxteis – “Malha. Fechamento” – evocam o conforto associado ao domínio feminino do interior doméstico, a que tantas mulheres continuam confinadas. Recordando a tese do arquiteto Gottfried Semper (1803-1879), acerca da origem têxtil da arquitetura, na sua relação entre imagem e limite ou parede, este reverso das paredes-cortinas de Celeste Cerqueira, transforma as paredes em paisagens agrestes, camufladas pela aparente abstração dos padrões coloridos, e expõe-nos ao fantasma das confortáveis prisões em que já nos amuralhámos. Subvertendo a riqueza da Europa e a sua política de exclusão, ativando articulações entre o material e o imaterial, a artista propõe ainda uma série de lenços estampados com uma seleção de frases recortadas, entre fevereiro e junho de 2025, da imprensa local. Nos estudos destes “Lenços e apropriações” surgem, destacadas, as frases: “as notícias do caos foram manifestamente exageradas”, “à procura da pertença num mundo em colapso”, “a paz continua longe”, “espaço para a incerteza”, “agora vemos porque devemos preocupar-nos”, “um novo rumo”, “a liberdade é o valor dos valores”, “depois logo se vê”, “nós gostamos das nossas ilusões, gostamos de ter inimigos e estamos habituados às nossas guerras”, “alguns sonhos perdem-se cedo”, “a política do medo”, “o que é essa coisa chamada humanidade?”, “entretanto, aqui mesmo ao lado...ninguém olha para nós”, ou “isso nunca existiu”. As fibras de seda de alta qualidade, importadas das “geografias difíceis”, são estampados com a retórica dos jornais europeus que constroem a política da exclusão, do ódio e do medo. Acreditando na ação na esfera cultural, a estratégia artística de Celeste Cerqueira procura subverter o status-quo da política dos estados-nação, a retórica desumanizada reproduzida na imprensa internacional, a falta de debate democrático e as campanhas da economia da exclusão. Estes “novos suportes de comunicação” apresentam-se como desconstruções materiais das “técnicas culturais” da injustiça instalada. A exposição e_i_migração evidencia a multiplicação de barreiras que separam a reivindicação do direito de emigrar, da incapacidade de acolhimento dos imigrantes, alertando para a exponencial massificação de espaços geográficos, em que milhares de seres humanos subsistem sem acesso aos direitos básicos do país onde se encontram. Celeste Cerqueira tem consistentemente trabalhado as fronteiras que se vêm anunciando e erguendo entre o ser humano, dividido entre indivíduo e coletivo, denunciando a retórica da exclusão, que não admite pluralidade, multiculturalismo, complexidade ou sequer abertura para um possível debate igualitário. Justapondo a intransponibilidade das barreiras fronteiriças e a rigidez das políticas de emigração com o nomadismo das tendas de campismo, as imagens agressivas das paisagens de exclusão com a noção de proteção doméstica transmitida pelos têxteis, e deslocando a imaterialidade do texto controlado pelos centros do capitalismo patriarcal para a visibilidade do adereço têxtil de luxo, Celeste Cerqueira conjura uma nova articulação de imagem, objeto e médium, criando uma nova textualidade que procura recuperar o debate dos direitos dos exilados, apátridas e cidadãos das nações sem Estado, e provocar uma discussão política mais inclusiva sobre o direito de existir. Paula Parente Pinto, Agosto 2025 CELESTE CERQUEIRA: e_i_migração Celeste Cerqueira apresenta uma seleção de referência às barreiras fronteiriças erguidas para conter a entrada de fluxos migratórios na Europa: as sucessivas barreiras em Calais; o maciço muro erguido pela Hungria na fronteira com a Sérvia; os 160 quilómetros de arame farpado com que a Bulgária impede a entrada de refugiados do Médio Oriente, da África e do Afeganistão a partir da Turquia; o muro que a Grécia ergueu na fronteira com a Turquia; a vedação que a Macedónia do Norte ergueu na fronteira com a Grécia; o “muro de aço” que a Polónia levantou na fronteira com a Bielorrússia; e o muro erguido em Melila, que juntamente com o de Ceuta, são os exemplos mais próximos de Portugal. As barreiras fronteiriças e os campos de refugiados não deveriam existir: eles representam um crime e um falhanço político. Enquanto os suportes materiais das políticas de vigilância proliferam e se densificam, os enclaves humanos de emigrantes e exilados continuam a padecer de qualquer estatuto de permanência, o que institucionaliza a sua desproteção e precariedade. A caracterização destas populações como “deslocadas” ou “desalojadas,” e a sua condição apátrida, impedem o desenvolvimento e proteção do seu estatuto cultural e político. A exposição e_i_migração evidencia a multiplicação de barreiras que separam a reivindicação do direito de emigrar, da incapacidade de acolhimento dos imigrantes, alertando para a exponencial massificação de espaços geográficos, em que milhares de seres humanos subsistem sem acesso aos direitos básicos do país onde se encontram. Celeste Cerqueira tem consistentemente trabalhado as fronteiras que se vêm anunciando e erguendo entre o ser humano, dividido entre indivíduo e coletivo, denunciando a retórica da exclusão, que não admite pluralidade, multiculturalismo, complexidade ou sequer abertura para um possível debate igualitário. Justapondo a intransponibilidade das barreiras fronteiriças e a rigidez das políticas de emigração com o nomadismo das tendas de campismo, as imagens agressivas das paisagens de exclusão com a noção de proteção doméstica transmitida pelos têxteis, e deslocando a imaterialidade do texto controlado pelos centros do capitalismo patriarcal para a visibilidade do adereço têxtil de luxo, Celeste Cerqueira conjura uma nova articulação de imagem, objeto e médium, criando uma nova textualidade que procura recuperar o debate dos direitos dos exilados, apátridas e cidadãos das nações sem Estado, e provocar uma discussão política mais inclusiva sobre o direito de existir.

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CELESTE CERQUEIRA: e_i_migração Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura CAAA, Guimarães 6.09.-25.10.2025 Curadoria: Paula Parente Pinto
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Fotografia: Fausto
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