Arquivos

Categoria

Subcategoria

Criador

Data

Capítulos Gerais

Grupos

Falcão Machado, "Da Obscenidade à Pornografia", in Labor, n.º 286, Outubro de 1970, pp. 8-21.

"No dia 16 de Abril de 1970 o higiénico cavalheiro F. Falcão Machado (de sua graça ou pseudónimo) proferiu uma conferência intitulada "Da Obscenidade à Pornografia" no Clube dos Fenianos Portuenses, sob os auspícios da Liga Portuguesa de Profilaxia Social. Cuidou então a Revista "Labor" de editar a primaveril charla em separata ao seu número 286, para regalo da posteridade: "Minhas Senhoras e Meus Senhores: Causou escândalo, no nosso meio, o aparecimento de uma antologia de poesia portuguesa, erótica e satírica, compilada e seleccionada por uma escritora contemporânea. Algumas pessoas que compraram essa antologia reagiram indignadamente; e um conhecido titular e escritor residente no Porto e falecido há poucos meses, mandou encadernar e pôr um cadeado na capa do exemplar que adquiriu. À guisa de canapé não estava mal: todos sabiam o que iam trincar, por interposto F. Falcão Machado. Como as "algumas pessoas" e o "conhecido titular" recém-falecido - que até haviam dispendido uns tostões no fartote... - todos sabiam quem era "uma escritora contemporânea": Natália Correia fora condenada há menos de um mês (21 de Março) por "ofensiva do pudor geral, da decência e da moralidade pública e dos bons costumes" a 90 dias de prisão correccional substituíveis por igual tempo de multa, a 50 escudos por dia, mais 15 dias de multa à mesma taxa. Os jornais "Primeiro de Janeiro" e "Diário de Notícias" de 22 de Março haviam dado ao país conta sucinta da sentença do Tribunal Plenário, no caso que opunha o Ministério Público aos cometedores (vivos) da "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" - charivari jurídico que se arrastava desde que o vibrante volume saíra da Sociedade Astória, Lda., composto e impresso, com a chancela da Afrodite. Desde quando exactamente é uma questão interessante. Senão vejamos: a presente reedição da Antígona/Frenesi apõe "[1966]" à indicação "s.d." referente à edição original. Também Mário Cesariny, um dos poetas antologiados por Natália, se refere a "Dezembro de 1966" como a data em que a Antologia foi apreendida pela PIDE, apreensão essa que se sabe ter sido quase imediata à publicação. De facto, a tiragem normal de capa branca - porque há uma tiragem especial de 500 exemplares, de capa castanha, "em papel off-set, numerados de 1 a 500 pelo editor e rubricados pela autora" -da edição original de Fernando Ribeiro de Mello não tem data. Mas o prefácio de Natália Correia aparece datado de Novembro de 1965; o exemplar da edição original que o Leituras cotejou (1) está datado de Dezembro de 1965 pela caligrafia de quem o detinha, o bibliófilo Ricarte-Dácio de Sousa; e, acima de tudo, o ante-rosto da edição da "Filosofia na Alcova", terceira publicação da Afrodite, datada de 1966, relembra as obras até então editadas pela casa de Ribeiro de Mello: "Kama Sutra" e "Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" - o que estabelece a precedência da "Antologia..." sobre a "Filosofia...", a também polémica, apreendida e processada tradução do Marquês de Sade. Aliás, já numa carta de 16 de Março de 1966, Luiz Pacheco (outro dos antologiados, e condenados) refere uma "ida à PJ" por causa da Antologia. Na origem da confusão poderá estar o facto de, sendo embora anterior em data de publicação, o processo da "Antologia" se ter concluído depois do processo da "Filosofia": ou seja, no julgamento da "Antologia", Ribeiro de Mello já era um reincidente.A referência a "Dezembro de 1966" de Mário Cesariny vem incluída numa nota a alguns poemas de "Primavera Autónoma das Estradas" (ed. Assírio & Alvim) - entre os quais estão dois poemas citados como ofensivos pelo Tribunal, "Panasca" e "Praeludium". Mas, à época em que Natália preparou a Antologia, Cesariny nem sequer se encontrava em Portugal. "Eu estava em Londres", lembra agora o poeta, " e a Isabel Meireles, uma companheira dos tempos surrealistas, passou por lá e disse-me que a Natália ia fazer uma antologia. Então dei-lhe aqueles poemas, que acabara de escrever". Cesariny também não esteve no julgamento, cujas consequências inscreverá - a partir dos jornais - assim, na sua nota: "Embora 'reconhecendo o mérito literário da obra' (com excepção para os textos de Mário Cesariny, cujo mérito literário foi considerado nulo), os julgadores ordenaram a destruição dos exemplares mandados roubar das livrarias, e condenaram: Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello em 90 dias de prisão correccional substituíveis por igual tempo de multa, a 50 escudos por dia, mais 15 dias de multa à mesma taxa; Mário Cesariny, em 45 dias de prisão correccional, substítuíveis por igual tempo de multa a 30 escudos por dia e mais sete dias de multa à mesma taxa; José Carlos Ary dos Santos, idem a 40 escudos diários; E. de Melo e Castro, idem a 50 escudos diários; Campista Escritor, idem a 25 escudos diários. Exceptuando Campista Escritor e Fernando Ribeiro de Mello todos os mais tiveram penas suspensas por três anos. O imposto de justiça e o de procuradoria foram arrecadados como segue: Natália Correia, Melo e Castro e Fernando Ribeiro de Mello, dois mil escudos cada; Mário Cesariny e José Carlos Ary dos Santos, 1500 escudos idem, Campista Escritor 880 escudos."Campista Escritor era como Mário Cesariny chamava a Luiz Pacheco. À distância de 30 anos, Pacheco recorda-se muito bem da primeira sessão do Tribunal, a única a que compareceu: "Estava um rapaz que anda muito na televisão, o Jorge Sampaio, que era advogado do Ary dos Santos... Ao todo éramos oito réus: eu, o Ribeiro de Mello, a Natália, o Cesariny, o Ary, o Melo e Castro, um Francisco Marques Esteves, chamado Chico das Águas, que lá estava porque tinha dado os poemas do [António] Botto à Natália, e mais um... O Ribeiro de Mello faltou porque estava internado na Cruz Vermelha. A sessão foi uma palhaçada. O mais espaventoso era o Ary, a enterrar-se com aquele corpanzil todo e o juiz a dar-lhe corda... o juiz dizia assim: 'sabe que empregou palavras obscenas...', e o Ary: 'sim, empreguei palavra obscenas!', e o Sampaio muito novo, a tentar salvar a situação: 'o meu constituinte não percebeu a pergunta..'! O David [Mourão-Ferreira] falou lindamente, da categoria da Natália, etc, fez ali uma lição..."Eram numerosos os cometedores: a começar em Fernando Ribeiro de Mello, o editor, e seguindo por nobre e longa linhagem de poetas (entre os que ainda estão vivos, por exemplo, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, António Ramos Rosa, Luiz Pacheco, Ana Hatherly, Herberto Helder ou E. M. de Melo e Castro), sem esquecer os cúmplices (em textos nas badanas) Luiz Francisco Rebello e David Mourão-Ferreira. Mas nem todos foram réus, dependeu do grau dos "impropérios". Antonina Julieta da Cruz Ribeiro, então casada com Ribeiro de Mello (o editor morreu no começo dos anos 90) lembra-se do dia em que a PIDE lhes bateu à porta à procura de exemplares da "Antologia": "Eram dois indivíduos, identificaram-se como sendo da PIDE, passaram a casa a pente fino. Até debaixo da cama foram ver. Levaram loiça das Caldas, um Engels, um Marx, mas exemplares da Antologia não encontraram, nem um."Ribeiro de Mello pusera uma boa quantidade a salvo, já prevendo a apreensão: "O meu marido sabia perfeitamente o risco que estava a correr, que a antologia ia ser apreendida. E a Natália também. Havia livros distribuídos por casas de amigos, livreiros... A edição era uma forma de protesto contra o regime." "Era uma dupla intenção", acrescenta Luiz Francisco Rebello - que na noite da apreensão se juntou em casa de Natália, com David Mourão-Ferreira, entre outros - "por um lado, com carácter estritamente cultural, fixar textos importantes; por outro, dar uma bofetada na face pudibunda do regime, que era duma hipocrisia espantosa, chocava-se com a poesia e depois participava nos 'ballets rose'".Um dos mistérios da história desta "Antologia" é porque é que Natália Correia nunca quis reeditá-la depois do 25 de Abril. A interpretação de Luiz Francisco Rebello é a de que "a abolição da censura levou a que o mercado fosse inundado de material pornográfico e a Natália não queria que a antologia se confundisse com isso". Antonina Ribeiro adianta: "O meu marido sempre quis fazer a reedição e andou à volta da Natália, argumentando que a sugestão tinha partido dele. Ela opôs-se sempre, terminantemente. E até se chegaram a zangar por causa disso. O argumento da Natália era o de que aquela edição estava ligada a uma determinada época e fora dela não tinha sentido. Mas houve uma fase logo a seguir ao 25 de Abril em que a Natália quis fazer uma reedição de luxo."Victor Silva Tavares, hoje editor da & etc e então editor da Ulisseia, acompanhou de perto o processo - aliás, foi quem emprestou a Natália Correia "através do Ribeiro de Mello" a recolha das Cantigas de Escárnio e Mal Dizer feita por Carolina Michaelis de Vasconcelos. "Depois do 25 de Abril, quando ela admite a hipótese da reedição de luxo, pede uma verba exorbitante como percentagem de capa e o Ribeiro de Mello recusa. Seria mesmo exorbitante, porque ele era um mãos largas e pagou sempre muito bem. Na primeira edição tinham combinado uma verba fixa por contrato, que ele pagou sem discutir. Aliás, penso que a ideia da Antologia partiu do próprio Ribeiro de Mello, que a propôs à Natália. Era por isso que ele reivindicava o copyright da obra e até me pediu para ser testemunha dele no processo que abriu contra ela. Mas eu recusei, por achar que, sem dúvida, a autoria intelectual pertencia à Natália, a pesquisa, a selecção, as notas. O resto eram questões jurídicas."O certo é que, além de ter aberto o processo contra Natália, Ribeiro de Mello ponderava mesmo, antes de morrer, fazer uma reedição da Antologia. Recorrendo à memória de Luiz Pacheco: "Em 1990 o Ribeiro de Mello veio cá [a Setúbal] porque queria que eu assinasse uma carta para autorizar a reedição. E eu dei-lhe a carta."Aliás, a célebre "edição pirata", s.d., supostamente oriunda do Rio de Janeiro, que surgiu pouco depois da original, substancialmente reduzida e sem as ilustrações de Cruzeiro Seixas, foi feita pelo próprio Ribeiro de Mello, como confirma Antonina Ribeiro.Trinta e tantos anos depois - quando a edição original nos alfarrabistas anda pelos 20 contos - podemos finalmente dispor da "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" na cuidada reedição conjunta Antígona/Frenesi. E mesmo que um qualquer flamejante F. Falcão Machado tentasse (como então tentou) unir "nacionalistas", "moralistas" e "crentes" na cruzada contra "a degradação que lança adolescentes e, até crianças, num mundo de porcaria, de imoralidade e de infecção com afrouxamento das resistências morais da grei portuguesa" (não se safava sem uma estação de TV), já não há PIDES a espreitar debaixo da cama." Alexandra Lucas Pires, "O bom PIDE vê sempre debaixo da cama", PÚBLICO, 26 de Junho de 1999.

Data
Abstract
A "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" , composto e impresso, com a chancela da Afrodite, teve edição original em 1966, data em que a Antologia foi apreendida pela PIDE. No dia 21 de Março de 1970, Natália Correia era condenada por "ofensiva do pudor geral, da decência e da moralidade pública e dos bons costumes" a 90 dias de prisão correccional substituíveis por igual tempo de multa, a 50 escudos por dia, mais 15 dias de multa à mesma taxa." Consultar os jornais "Primeiro de Janeiro" e "Diário de Notícias" de 22 de Março de 1970.